Espaço virtual que reúne o profissional psicólogo e o escritor amador em rabiscos de caminhos incertos.


quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Espelho, espelho meu...

Recebemos com frequência representações dos ideários de beleza, informações sobre o que usar e quando usar, dicas do que combina com o que... enfim, inúmeros informes que, em boa parte, extrapolam a sanidade dos espelhos. Programas, revistas e sites infestam o cenário midiático com a temática beleza, engrossando sua supervalorização e até sua comercialização.

Como não é surpresa, tal preocupação amplia-se até a tenra idade em nossa sociedade contemporânea, dando aos corpos infantis referenciais adultos.

Vale frisar que é muito comum e saudável crianças transvestirem-se de figuras adultas próximas, imitando-as em jeito e vestimenta. Em meu percurso infantil, lembro-me de passagens em que uso as gravatas do meu pai e pego seu barbeador, devidamente desligado, para aparar minha figurativa barba.

Porém, a ludicidade perde, literalmente, a graça, quando o exagero apresenta-se. Dia desses, fui apresentado a tal exagero na figura de uma pequena menina com sua mãe em uma livraria. Como de costume, ao fazer uma de minhas visitas a parte infantil da livraria, eis que encontro a dupla (mãe e filha de uns 5 anos) nesta mesma sessão. Com a transformação do dueto em uma tríade, com a chegada de uma amiga da figura materna, minha atenção voltou-se completamente para o falatório sobre moda infantil e a carreira meteórica da pequena modelo ali presente.

Enfim, encurtando a estória e não entrando no assunto sobre as tendências do verão para meninos e meninas, o que prendeu minha atenção naquele bate-papo foi a reação automatizada da menina a cada elogio emitido pela mãe, toda orgulhosa, ou por sua amiga. Ao escutar “linda”, “talentosa”, “perfeita”, “blá-blá-blá” – neste texto e contexto, blá-blá-blá são adjetivos bastante elogiosos – a candidata a Gisele Bündchen sorria forçosamente, fazendo pose como quem espera o click de uma máquina fotográfica – com direito a mãozinha na cintura.

Naquele momento, aquela criança distanciava-se de sua real idade. Ali, não estava mais uma menina brincando de ser adulta, subindo nos sapatos da mãe ou borrando a cara com maquiagem, tornando seu rosto numa tela de Picasso. Presenciei algo mais próximo do estranho mundo dos concursos infantis de beleza dos EUA, em que crianças apresentam-se com cabelos que dariam inveja a Hebe Camargo e sorrisos parecidos com o do Coringa.

Ressalvo, mais uma vez, que admirar e imitar figuras adultas próximas ou até mesmo pessoas famosas faz parte do desenvolvimento infantil em um processo de identificação e diferenciação. A criança vivencia inúmeros papéis ao brincar, mostrando flexibilidade e versatilidade, sendo em um momento um cavaleiro com corte de cabelo do Neymar e, em outro momento, um monstro gosmento.

O que observo como um movimento bastante presente na atualidade, onde a beleza infantil tornou-se mercadoria, é o distanciamento do seu próprio mundo infantil, onde crianças trazem comportamentos de miniadultos em relação à vaidade, demonstrando preocupações até com o seu peso corporal.

Normalmente, quando tais comportamentos aparecem de maneira tão perceptível para os pais, recebemos (psicólogos) ligações preocupadas. A questão é que em boa parte das situações, são os próprios adultos, que transmitem e incentivam a valoração desses padrões de beleza.

Crianças recebem títulos nobres de príncipes e princesas “da mamãe” e “do papai” e, quantas vezes, também recebem as expectativas com que ajam com a desenvoltura e elegância de tal fidalguia.

Existe um fato incontestável na modernidade: a grande quantidade de oferta no mercado da aparência, onde crianças são público-alvo de produtos e tratamentos de beleza. O sinal de alerta é que também existe um excesso de estímulo em prol da beleza dentro das casas, com o incentivo deste tipo de consumo sem nenhum contorno, onde crianças param de brincar para não sujar as roupas ou despentear os cabelos.

Então, “espelho, espelho meu”, vou te explicar uma coisa. Sei que no mundo encantado as roupas não amassam, os sorrisos são sempre brancos, os cabelos tem um laquê permanente, mas dá um desconto no mundo real. Aqui, a sujeira suja, e o vento desarruma e despenteia; e pra brincar, rola um cabível descomprometimento com você. 


2 comentários:

  1. Perfeito, meu amigo. Eu, como mãe, tenho frequentado esse universo de pais
    e filhos, me assusto muito com o que vejo por aí. Mesmo sendo um tema jå bem discutido, ainda då um belo estudo. Bjs

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  2. Felipe, adorei seu texto! Isso me incomoda muito também. Atrelo esse universo a temática de feminismo. olha esse texto: http://lobjettrouve.net/2012/08/15/como-conversar-com-meninas/
    adorei!
    parabéns
    Priscila Bastos

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